Chegou esta semana aqui em casa um novo inquilino. Vem não sei de onde, trazido não sei por quem. O que quer este homem? O fato de não trazer nenhuma carta de recomendação, uma de nossas condições para que qualquer um compartilhe de nossas lembranças, não me impediu de acolhê-lo, assustada e carinhosamente.
Chega com malas pesadas, mas de cores claras, recusando-se a dizer seu nome e conteúdo, adentrando a casa que outrora fora de nossos pais com olhar que guarda certezas grandes e por isso me causa um tanto de espanto curioso.
Divido com ele diariamente um silêncio que tem preenchido como nunca antes espaços abandonados e esquecidos.
Entra. Sai. E com o decorrer dos meses acabei por me acostumar a esta forma altera de presença. Sei que faz alguma coisa na rua, por que retorna sempre ao final da tarde com aspecto circunspeto, grave. E agora pouco me importa o que de fato o obriga a sair diariamente e o que de tão urgente o leva à rua e para longe de mim. O que sei é que passei a esperá-lo.
Ele não sabe, mas à noite também compartilha da minha cama. E não importa se se tratam de noites frias de lua alta ou aquelas em que costumávamos nos atirar ao mar. Eu o espero. Ele compartilha a minha cama. E agora também, o meu passado. E por alguns breves momentos acho que o tenho. Não sei se devo avisá-lo quanto a isso.
Também não sei se compartilhamos da mesma familiaridade. Se são os mesmos objetos espalhados pela sala que vemos. Somos feitos da mesma carne? O nosso silencio às vezes é traduzido por algumas frases ditas num dialeto estrangeiro. Assim, nos poucos momentos de encontro, acordamos recorrer a um dicionário.
O que sei é que pouco a pouco a casa passou a girar em torno de suas necessidades e quereres. E não posso te dizer que sem meu consentimento. A disposição dos candelabros foi rearrajanda. Assim como o foram as frutas da geladeira e as músicas que passaram a tocar em nossa antiga vitrola.
Por vezes me pego pensando no momento em que ele decida ir embora. Tão envolto em mistério e tão sem aviso quanto chegou. Mas frente ao pavor que me causa essa idéia, me obrigo a dançar sobre as flores do campo e a pensar no quanto são lindas as baleias jubarte. E a casa novamente se enche de uma tranquilidade , que sei, cara.
Agora já se foram alguns anos. E a banalidade dos hábitos não foi suficiente para que tenha conseguido abrir as malas ou saber ao certo seu nome. Tanto que não saberia onde procurá-lo caso suas atividades da rua o empeçam um dia de voltar. Desejaria que fosse diferente, por que assim não seria tomada pelo sentimento apavorante e constante de premência. Fingimos dividir os pratos, conhecer as esquisitas vontades e contabilizar lado a lado as rachaduras do teto. Bailamos mascarados, alegremente. Mas até quando?
Nas tardes em que o estranho se atrasa procuro cheia de culpa nosso antigo álbum de família, tentando buscar a serenidade dos dias de laços de fita. Mas os dias têm passado com uma rapidez estonteante e agora já não sei quem é dono e quem é o inquilino desta casa. Sei que nunca chegara o dia em que o mandarei embora.
Por isso essa carta, Lucy. Peço que mande outro estranho. E agora, por favor, com referências. Que venha ao menos com nome. E que eu possa, se for o caso, avisá-lo claramente que compartilha da minha cama.
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9 comentários:
A uns bons anos atrás li uma passagem de um livro de Baudrillard - América - que dimensionou pra mim, de forma simples, direta e muito apropriada o que é estar só na contemporaneidade. Que diabos de solidão é essa que se sente em meio a profusão de coisas, pessoas, estímulos? Diz ele: ‘não há nada mais triste do que o homem que prepara publicamente e sozinho sua refeição... não há nada mais desolador que um homem comendo sozinho em público’. Baudrillard fala aqui da cena de um nova-iorquino solitário comendo de pé no Central Park, mas avizinhado na sua solidão, porque mais um de uma prática lugar-comum. Numa passagem anterior ele ainda diz: ‘as pessoas sorriem, até sorriem cada vez mais, jamais uma para as outras, sempre para elas próprias’. As pessoas não se somam (se subtraem), fazem com que não haja semelhança entre uma certa solidão e outra, uma certa dor e outra, e entre uma felicidade e outra também!,o que dificulta emmuito uma possível partilha.
E estes dias li um trechinho do Nicolas Ray que também consegue, de forma simples e direta, dizer de um sentimento meu muito presente, se não o maior hoje. Diz ele: ‘eu resumiria o drama contemporâneo assim: não podemos voltar para casa’. Não podemos aqui, acredito, no sentido de que não termos para onde voltar! Despertencimento (de lugares, sentimentos, causas, sonhos, escolhas éticas. Foda!). Quer coisas mais absurda que esta, sentir não haver um lugar de re-conforto, não identificar um lugar ou pior, um sentimento, de re-acolhida?. Quer maior solidão? Mais triste do que a criatura que se alimenta sozinho em publico é aquele que come sozinho em publico e sente (e sabe!) que não tem pra onde voltar!
E sim Ana, ao mestre, com muito carinho. Feliz por também ser uma das muitas “mulheres de Chico” por este Brasil a fora, deixo uma letra que tem muito a ver com isso ai de cima que escrevo:
A minha tristeza não e feita de angustia
A minha tristeza não e feita de angustia
A minha surpresa
A minha surpresa e só feita de fatos
De sangue nos olhos e lama nos sapatos
Minha fortaleza
Minha fortaleza é de um silêncio infame
Baseando a si mesmo retendo o derrame
A minha represa.
(eu mesma pertenceria a ele fácil!! rsss)
É de Clarice essa bomba?
M., vc me ama, eu te amo, vc diz o que eu penso. Vamos casar?
se eu disser que queria postar essa música do chico vc não vai acreditar né?
Q delícia compartilhar desse encontro virtual de idéias, textos, músicas e tb do Chico!
Amo vcs tanto que, pra durar mais, acho melhor no casar.
Lucy...
Kás,
vc é uma gracinha (rsss!!). Sabe que adoraria casar com vc, mas o problema é que somos muito parecidas, mas tanto que somos até mulheres!! além do mais, nossos planos de casamento endógeno já estão com prazo de validade vencido desde a época da faculdade...
mas o plano B era montar uma comunidade e vivermos todos próximos e felizes, lembra? onde foi mesmo que a gente se perdeu?
e o texto, deixa de ser besta pq vc já tinha lido antes!!
cadê LÚ???
amor, m.
to um pouco retraída, encolhida... minhas asas estao em repouso.
mas to aqui, acompanho os vôos, as flores, os poemas... ta tudo lindo!
m,
que delicia ler seus textos!esse ficou bem bacana.
bom feriado...
bjs
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