O Homem (que inventou sobrevoar os ralos procurando por pombos)

Era costume dele pintar seus olhos de azul nos dias em que não era possível tingir de sol o céu escuro. Tinha gosto pela brisa fresca dos dias ensolarados e de sua janela entretinha-se com a existência impensada dos animais que habitavam as redondezas. Sua preferência era o casal de pombos que sobrevoa diariamente sua janela, sinalizando boa-venturança e poesia. Mas, olhando um pouco mais abaixo, também enxergava uma numerosa família de ratos, inquilinos do ralo do prédio vizinho. Sempre se questionara se devia tê-los entendido como um prenúncio de infortúnios. Mas preferiu deixá-los em paz. Os ratos. E por um bom tempo, sua vida.

Diante daquele buraco imenso que se abre insistente na sua parede e por onde a sensação de possibilidade se impõe diariamente de maneira ameaçadora, o homem também tinha o hábito de compor para si personagens. A vida sempre lhe pareceu um enorme e esquisito texto, e para seus personagens heróis escrevia cartilhas de desejos, necessários para erguer o que tinha aprendido sobre uma tal felicidade. Algumas regras eram claras. Outras viam seguidas de afetos que remontam tempos que agora não são seus. A regra pela qual nutria maior apreço, a mais clara também, era aquela que dizia que devia querer coisas para ser feliz. Sobretudo, que devia desejar cenas familiares (não respeitava a rotina e a monotonia das cenas repetidas. Mas o homem e seus personagens amavam o familiar!). Querendo aqui e acolá, e ao termo de seus dias, construiu cenas, sortidas, coloridas, inúmeras, voadoras...ai, dizia o homem! Assim seguindo, forjava uma vida para si e seus “sis”.

De costas para o buraco, nas manhãs de cafés mais demorados, quando o mundo passava a existir entre a sua pele e os limites descascados de seu apartamento, o homem começa a querer perguntar sobre as regrinhas que funcionam pouco. Destas entende quase nada. Ignorar o não familiar: regra décima não sei quanto do seu texto. Sabe menos ainda de sua tão recentemente descoberta vaidade.

Pensar sobre ela é uma dificuldade. Tão robusta que, nos últimos tempos, o homem passou semanas olhando pela janela, vasculhando a vida dos animais, tomando demoradamente seu café da manhã, tirando seus amarrotados personagens do armário, mas contudo, passou a entrar e sair de seu apartamento sem perceber que os cômodos e as gavetas estavam vazios. Ou antes, com um gostinho mofado de nada.

Numa noite, desabado sobre o sofá da sala, sapatos apertando seus pés, o homem procura no silêncio por antigos lugares ocupados. Tenta achar um bilhete ou lembrar um número de telefone que o pudesse fazer entender o que exatamente acontecia ali. Mas, desabado sobre o sofá da sala, com os sapatos apertando seus pés, assistiu como a um filme alguns seus personagens passeando por lembranças que agora lhe trazem sensações esquisitas. Cores fortes e cenas descompassadas parecem projetadas na parede. Projetado é também o tempo. Tempo azul. Tempo azul que se vai. Assim como também agora se vão as semanas de entra e sai embaladas por uma dormência turbulenta que vai de lado a lado do seu corpo. Tempo de conforto. Tempo monótono de conforto e familiaridade que se vai. Assim como também se vão os lugares outrora ocupados pelos outros personagens que com ele compunham até a pouco sua vida.

Agora o homem pergunta pelos seus “eus” de outrora. Sabe-se lá onde estavam. Bem alimentados, protegidos por um novo teto, amparados por um outro progenitor, com as malas devidamente arrumadas para as viagens de férias, amando sob a chuva gelada? O que seria deles? Como procura com insistência por todos os buracos da casa e não acha nenhum registro, nenhum registro que ateste a existência dos seus aqueles outros, inventou que jamais existiram. Simples como se inventa a própria vida. Alguns outros não mais existem. Resta ele. Inventou para si e para sua recém descoberta vaidade outras saídas. Inventou enxergar com os olhos de um cão as ruas que se abrem em seus contornos tortos. Sobretudo, inventou que suas horas compõem um circulo que devem rodopiar bem longe da saudade da ventura trazida pelas aves e do sentimento de esgoto que tomou conta de sua sala e de sua janela, tal qual a casa-ralo dos vizinhos ratos.

Inventa um fim também para suas lembranças agora sem personagens. Enquanto a história não se finda, senta sem demora na mesa do café da manhã, o homem desata os sapatos apertados e, calmamente, escreve para os seus novos personagens outros textos.

3 comentários:

Monica L F disse...

textinho em construção...

"quando minha tristeza se torna por demais pesada, vou sentar-me no terraço do norte, onde o vento acumula as flores de uma invisível amendoeira"

Tu Fu

lucelia zamborlini disse...

lindo esse texto! quando sai o livro?
beijocas...

Anônimo disse...

ótimo texto, bem articulado e cheio de sutilezas...um texto provocador e dispar, como sua autora...
também aguardo o livro.